sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O homem conservador

de Titus Burckhardt Tradução de Luiz Pontual

Deixando de lado quaisquer matizes políticos que a palavra possa ter, o conservador é alguém que procura conservar. E para dizer se ele está certo ou errado deveria ser suficiente analisar o que é que ele quer conservar. Se as formas sociais que defende — pois sempre se trata de formas sociais — estão em conformidade com o objetivo mais elevado do homem e correspondem às suas necessidades mais profundas por que não deveriam ser elas tão boas quanto — ou mesmo melhores — que qualquer coisa de novo que a passagem do tempo possa trazer à luz?
Pensar desta maneira seria normal, mas o homem de hoje já não pensa normalmente. Mesmo quando não despreza automaticamente o passado e vê o progresso técnico como fonte de todo bem da humanidade, ele normalmente tem um preconceito contra qualquer atitude conservadora, pois, consciente ou inconscientemente, está influenciado pela tese materialista de que todo “conservar” é inimigo da vida em constante mudança e assim leva à estagnação.
O estado de necessidade em que hoje se encontra toda comunidade que não acompanhou a marcha do progresso técnico parece confirmar essa tese; mas as pessoas se esquecem que isso não é tanto uma explicação quanto um estímulo para um desenvolvimento ainda maior. Que tudo deva mudar é um dogma moderno que busca sujeitar o homem à própria mudança; e é avidamente proclamado, mesmo por aqueles que se consideram cristãos sinceros, que o próprio homem está nas garras da mudança; que não somente os sentimentos e pensamentos passíveis de serem influenciados pelo ambiente estão sujeitos à mudança, mas também o próprio ser do homem.
Dizem que o homem está a caminho de se desenvolver mental e espiritualmente até se transformar em um super-homem, e, consequentemente, o homem do século XX é visto como ume criatura diferente do homem de antigamente. Em meio a tudo isso, esquece-se a verdade, proclamada por toda religião, de que o homem é o homem, não meramente um animal, porque tem dentro de si um centro espiritual que não está sujeito ao fluxo das coisas. Sem este centro, que é a fonte da capacidade humana de tecer julgamentos — e portanto pode ser chamado de órgão espiritual que veicula o senso da verdade —, não poderíamos nem mesmo reconhecer a mudança no mundo que nos rodeia, pois, como disse Aristóteles, aqueles que declaram que tudo, inclusive a verdade, segue um fluxo constante se contradizem: pois se tudo muda, sobre qual base eles podem formular uma afirmação válida?
É preciso dizer que o centro espiritual do homem é mais do que a psique, sujeita como ela está a instintos e impressões, e também mais do que o pensamento racional? Há algo no homem que o liga ao Eterno, e este algo encontra-se precisamente no ponto aonde “a Luz que ilumina todo homem que vem ao mundo” (João, 1, 9) toca o nível das faculdades psico-físicas.
Se esse cerne imutável no homem não pode ser captado diretamente — como também não o pode o centro sem dimensões de um círculo — as vias de aproximação a ele podem não obstante, ser conhecidas elas são como os raios que correm em direção ao centro de um círculo. Essas vias de aproximação constituem o elemento permanente em toda tradição espiritual e, como linhas mestras tanto para a ação quanto para aquelas formas sociais que se dirigem para o centro, constituem a verdadeira base de toda atitude verdadeiramente conservadora. Pois o desejo de conservar certas formas sociais só tem sentido — e essas formas só podem perdurar — se elas dependerem do centro intemporal da condição humana.
Em uma cultura que, a partir de suas próprias fundações (graças à origem sagrada), está dirigida para o Centro espiritual e portanto para o eterno, a questão do valor ou da ausência de valor de uma atitude conservadora não se coloca; a própria palavra para isso não existe. Em uma sociedade cristã, os homens são cristãos — mais ou menos consciente e deliberadamente —, em uma sociedade islâmica eles são muçulmanos, em a uma sociedade budista eles são budistas, e assim por diante; se alguém não o é simplesmente, não pertence à sua respectiva comunidade e não é parte dela, antes coloca-se fora dela ou lhe é secretamente inimigo.
Uma cultura como essa vive de uma força espiritual que imprime sua marca em todas as formas, desde a mais elevada até a mais contingente, e ao fazer isso ela é verdadeiramente criativa; ao mesmo tempo, ela tem necessidade de forças de conservação, sem as quais as formas logo desapareceriam. Basta que tal sociedade seja mais ou menos integral e homogênea para que a fé, a lealdade à tradição e uma atitude conservadora espelhem-se umas às outras como círculos concêntricos.
A atitude conservadora só se torna problemática quando a ordem da sociedade, como na Europa moderna, já não é determinada pelo eterno; a questão então se coloca, seja qual for o contexto, de saber quais fragmentos ou ecos da ordem outrora oniabarcante mereceram ser preservados. Em toda configuração da sociedade (e uma configuração hoje segue-se à outra em uma sucessão cada vez mais rápida), os protótipos originais nela estão refletidos de uma ou de outra maneira. Mesmo se a estrutura anterior é destruída, alguns de seus elementos individuais continuam efetivos; um novo equilíbrio — por mais deslocado e incerto que seja — é estabelecido depois de cada rompimento com o passado. Certos valores centrais são irremediavelmente perdidos; outros, mais periféricos em relação ao plano original, tomam a dianteira. A fim de que estes também não sejam perdidos, pode ser melhor preservar o equilíbrio existente do que arriscar tudo em uma tentativa incerta de renovar o todo.
Tão logo esta escolha se apresenta, a palavra “conservador” entra em cena — na Europa, ela foi adotada pela primeira vez na época das guerras napoleônicas —, e o termo fica marcado pelo dilema inerente à própria escolha. Todo conservador é imediatamente suspeito de querer apenas preservar seus privilégios sociais, por pequenos que sejam. E nesse processo a questão de saber se o objeto da preservação vale a pena ser preservado é deixada de lado. Nas por que a vantagem pessoal deste ou daquele grupo não poderia coincidir com a Justiça? E por que determinadas estruturas e determinados deveres sociais são poderiam ser proveitosos para uma certa inteligência?
Que o homem raramente desenvolve a inteligência quando carece dos estímulos exteriores correspondentes é provado pelo pensamento do homem comum de hoje em dia; só muito poucos — em geral, somente aqueles que em sua juventude experimentaram um fragmento da “velha ordem”, ou que tiveram a oportunidade de visitar uma cultura oriental ainda tradicional — podem imaginar quanta felicidade e paz interior uma ordem social estratificada de acordo com as vocações naturais e as funções espirituais pode oferecer, não somente às classes dominantes, mas também às classes trabalhadoras.
Em nenhuma sociedade humana, por mais justa que ela possa ser como um todo, as coisas são perfeitas para todo indivíduo, mas há uma prova segura de se uma dada ordem oferece ou não felicidade à maioria: esta prova é inerente a todas aquelas coisas que são feitas, não com algum propósito material, mas com alegria e devoção. Uma cultura em que as artes são criação exclusiva de uma classe especialmente educada — de maneira que não há mais nenhuma arte popular ou nenhuma linguagem artística universalmente entendida — fracassa complemente a este respeito. A recompensa exterior de uma profissão é o rendimento que sua prática pode assegurar; mas sua recompensa interior é que ela deveria lembrar o homem do que, por natureza e vindo de Deus, ele é e a este respeito não são sempre as ocupações mais bem sucedidas que são as mais felizes.
Cultivar a terra, orar por chuva, criar alguma coisa significativa a partir da matéria bruta, compensar a carência de alguns com o excesso de outros, governar estando ao mesmo tempo preparado para sacrificar a própria vida pelos governados, ensinar por amor à verdade — estas, entre outras, são as ocupações interiormente privilegiadas. Poder-se-ia perguntar se, como resultado do “progresso”, elas aumentaram ou diminuíram.
O homem tornou-se sua própria medida, diriam muitos hoje, quando, como trabalhador, ele posta-se diante de uma máquina. Mas a verdadeira medida de um homem consiste em que ele possa rezar e abençoar, lutar e governar, construir e criar, plantar e colher, servir e obedecer — todas essas coisas pertencem ao homem.
Quando, hoje, certo elemento urbano exige que o sacerdote despoje-se dos sinais de sua função e viva o máximo possível como os outros homem, isto apenas prova que esses grupos já não sabem o que o homem fundamentalmente é; perceber o homem no sacerdote significa reconhecer que a dignidade de sacerdote corresponde infinitamente mais à natureza humana original do que o papel representado pelo homem “comum”. Toda cultura geocêntrica tem uma hierarquia mais ou menos explícita de classes sociais ou “castas”. Isto não significa que ela considere o homem como uma mera parte que só encontre sua realização no povo como um todo; significa, ao contrário, que a natureza humana é em si mesma demasiado rica para que todos a todo momento estejam aptos a realizar todos os seus aspectos. O homem perfeito não é a soma total, mas o cerne ou a essência de todas as várias funções. Se as sociedades hierarquicamente estruturadas puderam se manter por milênios, isto se deve não à passividade dos homens ou ao poder dos governantes, mas ao fato de que tais ordens sociais correspondiam à natureza humana.
Há um erro muito difundido que diz que a classe naturalmente conservadora é a burguesia, que originalmente identificou-se com a cultura das cidades, onde se originaram todas as revoluções dos últimos quinhentos anos. A burguesia, de fato, especialmente como conseqüência da Revolução Francesa, desempenhou um papel conservador, e ocasionalmente assumiu alguns ideais aristocráticos — não, contudo, sem tirar partido deles e gradualmente falsificá-los. Em meio à burguesia, sempre houve conservadores que se baseavam na inteligência, mas desde o começo eles foram minoria.
O camponês é em geral conservador; ele o é, por assim dizer por experiência, pois ele sabe — mas quantos ainda sabem? — que a vida da natureza depende da constante auto-renovação de um equilíbrio de inumeráveis forças inter-relacionadas, e que não se pode alterar nenhum elemento deste equilíbrio sem comprometer o todo. Basta simplesmente desviar o curso de um ribeirão para alterar a flora de toda uma área ou eliminar uma espécie animal, permitindo imediatamente a outra espécie crescer de maneira devastadora. O camponês não acredita que se possa produzir chuva ou sol a bel prazer.
Seria errôneo concluir daí que o ponto de vista conservador está acima de tudo ligado ao sedentarismo e ao apego do homem ao solo, pois já se demonstrou que nenhuma coletividade humana é mais conservadora do que os nômades. Em todo o seu constante vagar, o nômade está atento em preservar sua herança de linguagem e costumes; ele resiste conscientemente à erosão do tempo, pois ser conservador não significa ser passivo.
Esta é uma característica fundamentalmente aristocrática; neste ponto, o nômade assemelha-se ao nobre, ou, para ser mais preciso, a nobreza que se origina na casta guerreira tem necessariamente muito em comum com o nômade. Ao mesmo tempo, contudo, a experiência de uma nobreza que ainda não foi estragada pela vida da corte e da cidade, que ainda está ligada à terra, assemelha-se à do camponês, com a diferença que ela abrange relacionamentos territoriais e humanos muito mais amplos. Quando, pela hereditariedade e pela educação, a nobreza está consciente da identidade essencial entre as forças da natureza e as forças da alma, ela possui uma superioridade que dificilmente pode-se adquirir de outra maneira; e todo aquele que está consciente de uma genuína superioridade tem o direito de insistir nela, do mesmo modo que em qualquer arte o mestre tem o direito de preferir seu próprio julgamento ao daquele que é inexperiente.
Há que se entender que a superioridade da aristocracia depende tanto de uma condição natural quanto de uma condição ética: a condição natural é que, dentro da mesma família ou tribo, pode-se, em termos gerais, depender da transmissão por herança de certas qualidades e capacidades; a condição ética expressa-se no dito “noblesse oblige”: quanto mais elevado o nível social — e seu privilégio correspondente — maior a responsabilidade e a carga de deveres; quanto mais baixo o nível, menor o poder e em menor número os deveres, até a existência eticamente indiferente das pessoas passivas. Se as coisas não são sempre perfeitas, isto não se deve principalmente à condição natural da hereditariedade, pois esta é suficiente para garantir indefinidamente a natureza homogênea de uma “casta”; o que é muito mais incerto é o cumprimento da lei ética, que exige uma combinação equilibrada de liberdade e dever. Não há sistema social que exclua o mau uso do poder; e se houvesse algum, ele não seria humano, desde que o homem só pode ser homem se ele se conforma simultaneamente à uma lei natural e a uma lei espiritual. O mau uso do poder hereditário, portanto, nada prova contra a lei da nobreza, ao contrário, só o exemplo daquelas poucas pessoas que, quando privadas do privilegio hereditário, nem por isso renunciam à sua responsabilidade hereditária já basta para provar a tendência ética da aristocracia.
Quando, em muitos países, a aristocracia caiu por causa de sua própria autocracia, isto se deu não tanto por que ela foi autocrática para com os níveis inferiores, mas antes porque ela foi autocrática em relação à lei superior da religião, a única que forneceu à aristocracia sua base ética e moderou com a misericórdia o direito dos fortes.
Desde a derrocada, não apenas da natureza hierárquica da sociedade mas de quase todas as formas tradicionais, o homem conscientemente conservador encontra-se por assim dizer em um vácuo. Ele se acha só em um mundo que, com toda sua escravidão opaca, jacta-se de ser livre e, com toda sua uniformidade compressora, jacta-se de ser rico. Gritam-lhe aos ouvidos que a humanidade está desenvolvendo-se continuamente em sentido ascendente, que a natureza humana, depois de se desenvolver por tantos e tantos milhões de anos, passou agora por uma mutação decisiva, que a levará à sua vitória final sobre a matéria. O homem conscientemente conservador encontra-se só entre notórios bêbados, é o único desperto em meio a sonâmbulos que tomam seus sonhos por realidade. Pelo entendimento e pela experiência, ele sabe que o homem, com toda a sua paixão pela novidade, continua fundamentalmente o mesmo, para o bem ou para o mal; as questões fundamentais da vida humana têm sido sempre as mesmas; as respostas a elas são conhecidas desde sempre, e, na medida em que podem ser expressas em palavras, têm sido transmitidas de geração em geração. O homem conscientemente conservador interessa-se por esta herança.
Visto que quase todas as formas tradicionais de vida estão destruídas, raramente se concede a ele participar de um trabalho universalmente útil e significativo. Mas toda perda implica em um ganho: o desaparecimento das formas pede por uma provação e um discernimento; e a confusão no mundo que nos rodeia é um chamado para que, desviando-se de todos os acidentes, voltemo-nos para o essencial.