terça-feira, 24 de dezembro de 2013

24 de dezembro: Esperar o repouso!

Tabernáculo da Paróquia Nossa Senhora da Paz, Boqueirão, Curitiba PR (Massa acrílica sobre madeira) 2002.
Davi e Zacarias, de modos muito diferentes, vivem igualmente um momento precioso em suas vidas, um tempo que poderíamos definir um salto de qualidade. Para Zacarias, o nascimento de João é a ocasião para completar a sua identidade sacerdotal com aquela profética, ao ponto de poder, finalmente, reabrir a boca depois de um silêncio que durou pouco mais de nove meses. Desta vez, as palavras de Zacarias não são mais nem para si mesmo, e muito menos, sobre si mesmo, mas constituem uma cascata de bênçãos que acompanha e dá ritmo, a cada manhã, à oração da Igreja: «Suscitou para nós um poderoso Salvador da casa de Davi, seu servidor» (Lc 1,69). O sinal desta Salvação, oferecida e experimentada agora em todo o seu esplendor, está no fato de que esta é capaz de «dirigir nossos passos no caminho da paz».(1,79).

Zacarias evoca o rei Davi, e a primeira leitura nos faz recordar um momento muito particular que poderíamos definir – também neste caso – um salto de qualidade na vida e na experiência espiritual do rei de Israel. O contesto do diálogo com Natan é muito claro: «Quando se estabeleceu em sua casa, e o Senhor lhe tinha dado repouso de todos os seus inimigos...» (2Sm 7,1). Quando Davi se sente seguro, e depois de se ter colocado em segurança, construindo para si uma «casa de cedro» (7,2), encontra as forças e o tempo para imaginar também um conforto para Deus, que habita simbolicamente na arca. A Davi, e até mesmo para Natan, parece ser uma belíssima ideia, mas o Senhor não o pensa assim... e ao invés de buscar para si um repouso, promete continuar a oferecê-lo: «Eu te darei repouso de todos os teus inimigos. O Senhor te anuncia que fará para ti uma casa» (7,11).

É esta a experiência que somos chamados a fazer, por nosso lado, nestas dulcíssimas horas natalícias. Enquanto tudo está pronto para colocar a imagem do Menino Jesus entre o boi o e burro de nossos presépios coloridos, somos convidados a recordar que é o Senhor que prepara para nós uma almofada apta ao nosso repouso, e o faz justamente oferecendo-nos o travesseiro perfumadíssimo de sua amadíssima humanidade, Toda vez que podemos contemplar uma criança que dorme, sentimos a beleza – unida a uma pitada de nostalgia – daquele senso de paz e de satisfação que todos buscamos e desejamos. O Verbo feito carne vem descansar entre nós e nos convida a repousar com Ele, dando-nos uma trégua de todos os nossos «inimigos», que são as preocupações inúteis e as cansativas ilusões.

A «casa» prometida a Davi não é um palácio maior e mais belo daquele de «cedro», mas é a casa da humanidade do Verbo, na qual toda expressão e experiência da humanidade pode sentir-se finalmente em casa, e encontrar repouso e paz. Enquanto contemplamos o repouso do Menino Jesus no presépio, já o contemplamos adormecido na Cruz: do berço ao tálamo é o caminho do Verbo encarnado, do amor recebido ao amor entregue é o nosso próprio caminho, feito à luz do Astro que surge para guiar nossos passos no caminho da paz... no caminho do dom de si!



Semeraro, M., La messa quotidiana, dicembre, Bologna 2013, 236-238.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

23 de dezembro - O nascimento do novo Elias

São João Batista, P. Ricardo Ramos, Montevideo - Uruguay
Deus faz surgir João Batista, como o novo e o último Elias, aquele no qual se cumpre e completa a longa descendência do profetismo. Todo o profetismo, de fato, não era senão uma preparação à vinda de Deus. Agora, Deus visitará seu povo «como um sol que surge dos abismos» (Lc 1, 78).

E é exatamente isso que, Zacarias, não mais incrédulo como na primeira visita do anjo, mas iluminado pelo Espírito Santo (Lc 1, 67) e repleto do espírito de profecia, reconhecerá neste seu filho, saído de sua carne, do qual contempla, com estupor, a missão no Espírito: «e tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo» (Lc 1,76). Em virtude do olhar profético que penetra, para além das aparências sensíveis, no conteúdo divino da história sagrada, Zacarias vê, no menino, aquele profeta por excelência – não somente profeta, mas «mais que um profeta» (Mt 11,9) – que «caminhará diante do Face do Senhor», isto é, que precederá o manifestar-se de Deus, para «preparar os caminhos» desta manifestação «mediante a remissão dos pecados». E esta manifestação não será o Juízo terrível trazido sobre uma humanidade escrava da morte e do pecado, mas a expressão da «terna misericórdia» que se levantará, como uma aurora, das profundidades dos abismos, como uma luz inesperada no coração das invencíveis trevas. (...) A vocação de João nos aparece como exemplar de toda vocação, enquanto cada vocação é uma eleição. Isto explica, antes de mais nada, a característica absolutamente gratuita da vocação. Deus escolhe como e quando quer, sem ser condicionado por nada, em plena e soberana liberdade. Liberdade, todavia, que não é arbítrio; se a liberdade divina não é condicionada por nada exterior, ela é, no entanto, a expressão dos misteriosos conselhos da sabedoria e do amor. Isto parece eminentemente em João. Ele é escolhido por Deus para uma missão que Deus mesmo lhe destina, não em virtude de qualquer mérito precedente, mas antes mesmo que nascesse. «Ele será repleto do Espírito Santo desde o seio materno» diz o anjo Zacarias (Lc 1, 15). A Igreja não hesitará em utilizar como intróito da sua missa, as palavras com as quais o profeta Isaías designa o eleito por excelência, o Servo de JHWH: «JHWH me chamou desde o seio materno, no seio de minha mãe, pronunciou meu nome» (Is 49, 1). Também aqui, João Batista aparece na sucessão de todos aqueles que Deus tinha escolhido no curso da história sagrada como seus próprios instrumentos. Pois a eleição está sempre em função de uma missão. (...)

A eleição aparece, assim, como um daqueles aspectos dos mores[1] divinos que se manifestam através da história sagrada, e que são o objeto da contemplação profética. Como Maria admirará, na encarnação do Verbo, a manifestação do supremo poder de Deus, assim também, Zacarias admira já, na eleição de João, uma maravilha que só Deus podia realizar. O Benedictus é quase uma profecia do Magnificat. Porém todo esta introdução do evangelho se desenrola como uma liturgia, na qual os mistérios se seguem a outros mistérios, enchendo de estupor, anjos e homens.

J. Daniélou, Giovanni Battista, testimone dell’agnello, 14-17.








[1] Mores= costume, hábito.

sábado, 21 de dezembro de 2013

21 de dezembro - A visita de Maria a Isabel

Visitação, Jean Marie Pirot (Arcabas)
Cumprindo a viagem da Galiléia à Judéia, de Nazaré a Ain-Karin, Maria não se dobra a um evento da história deste mundo, como acontecerá com a sua vinda a Belém na noite da natividade, quando fará obediência a um edito do imperador, e nem mesmo obedece a um mandamento divino, como acontecerá pela fuga ao Egito e o retorno daquela terra, em que cada vez, um anjo do Senhor informa José, em sonhos, seja do perigo que ameaça o menino, seja da morte daqueles que insidiavam a sua vida; não se conforma nem mesmo a uma prescrição da Lei, da qual cumpriria minuciosamente as disposições, como tem o costume de fazer, e como acontecerá durante sua purificação e a apresentação do menino no templo, quarenta dias depois de seu nascimento. Ainda menos vai até Isabel para verificar as palavras do anjo, por que a prima a saúda chamando-a de “feliz aquela que acreditou”, e louva, pois, a fé daquela que já acreditou.

Maria não se dirige para a montanha pela falta de fé na profecia ou por alguma dúvida sobre o que aconteceu em precedência, mas tão somente porque impulsionada pela alegria. Este visitar Isabel responde simplesmente à necessidade de Maria de estar lá onde é necessário um serviço; esta viagem revela a necessidade de Maria de poder cantar a misericórdia do Senhor que vem visitá-la, indo visitar aquela que também foi visitada pelo Senhor.

O tema da visita se encontra em muitas formas ao redor do gesto de Maria: no dia da anunciação, ela foi visitada pelo anjo vindo a comunicar-lhe sua eleição e solicitar seu fiat, seu consentimento. Por outro lado, Isabel, como então revelou o próprio anjo, também foi visitada, porque ela está no seu sexto mês, ela que era conhecida como estéril, e Deus colocou fim a sua vergonha. Em uma ligação profunda com estas duas visitas se cumpre esta outra visita de Maria, na direção da montanha, em uma cidade de Judá.

O tema da visita retorna frequente no evangelho da infância segundo Lucas: visita do anjo Gabriel a Zacarias e a Maria, visita de Maria a Isabel, visita dos pastores à manjedoura, visita de Maria e de José ao Templo, mais tarde, visita de Jesus, aos doze anos, a este mesmo Templo. Todas estas visitas presentes no evangelho da infância, e das quais a Visitação não é senão um exemplo, não são senão uma expressão multiforme da visita de Deus.

A visita de Deus em toda a Escritura indica a sua intervenção, trata-se de juízo ou de salvação. Deus visita quando julga, e Deus visita quando salva. E Maria, no Magnificat, canta a visita de Deus aos homens, da qual ela é o instrumento, canta o juízo e a salvação: os poderosos despedidos de mãos vazias e os pobres saciados, os saciados famintos e os famintos cumulados de bens, os soberbos humilhados e os humildes glorificados. É isto que canta Maria durante sua visita a Isabel.

A visita que ela faz a sua prima é, antes de tudo, uma imagem daquela que o Verbo se prepara para fazer aos homens, incarnando-se no seu seio, porque existe uma semelhança profunda entre o que acontece no seio da Virgem de Nazaré e o que acontece no caminho que separa Nazaré de Ain-Karin. O Verbo de Deus, que vem visitar os homens fazendo-se homem, visita já, neste gesto de Maria, preocupada de anunciar ao mundo a Incarnação. Esta visita, de fato, acontece à imagem da Incarnação; é a maior que se move, que vem servir, levando em si mesma aquele que, em seu seio, está tomando forma de servo e que vem "não para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mt 10, 45).
J.Goldstain, Harmoniques évangéliques, 18-20.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

20 de dezembro - Anúncio a Maria



Anunciação, Jean Marie Pirot (Arcabas)
As palavras da coleta deste dia nos permitem entrar diretamente no mistério de Maria, como ícone da Igreja e modelo de todo fiel: «A Virgem imaculada acolheu vosso Verbo inefável e, como habitação da divindade, foi inundada pela luz do Espírito Santo». O olhar da Igreja sobre o mistério de Maria, que lhe serve de espelho, é aquele de um espaço que, exatamente porque «o Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra» (Lc 1,35) torna-se um espaço de salvação, digno de ser chamado «habitação-templo». Deste templo, hoje a liturgia nos faz contemplar a «chave de Davi que abre as portas» (antífona do magníficat e aclamação do evangelho da missa). 
Misteriosamente, ainda antes do anúncio do anjo, parece que o coração de Maria já seja completamente aberto e que, nela, não exista nada que precise ser forçado, mas tudo está já pronto para que cada coisa se realize. Talvez o «sinal» (Is 7,14) que Maria é, vem precedido pelo sinal que a torna reconhecível ao anjo Gabriel «entre milhares de milhares» (Ct 5,10) e é por isso que a coleta a indica como parâmetro para que o mistério da Encarnação possa atualizar-se ainda no coração dos fiéis: «Concedei que, a seu exemplo, abracemos humildemente a vossa vontade». Bem diverso é o modo de reagir de Acaz (Is 7,11), que parece fechado por detrás da porta de uma certa devoção, que esconde o medo de confiar-se e de arriscar, com Deus, um percurso novo, de esperança e de vida. Maria é a mulher que se pergunta a si mesma e que tem coragem de perguntar ao anjo, mas com o tom justo: humildemente. Não se esgotará jamais a importância deste instante da história que mudou tudo e sobre o qual, a meditação da Igreja parece inesgotável. 
Amadeo, bispo de Losana – monge cisterciense e contemporâneo de São Bernardo – exprime admiravelmente com estas palavras: «Nós te pedimos, dize-nos qual sentimento te comoveu, qual amor te tomou, quando estas coisas se realizaram em ti, quando o Verbo tomou o teu espírito, os teus sentidos e a tua mente?»[1]. Tudo isto não pode estar senão envolvido pelo mistério de uma intimidade inviolável, mas, para nós fica tarefa de imitar a atitude de Maria, que «humildemente» sabe confiar sua vida, aceitando tornar-se guardiã da vida tão vulnerável do Verbo, que tenta fazer-se carne, para tornar-nos participantes de sua mesma vida divina. Uma palavra podemos levar no coração, como «sinal» (Is 7,14) e é aquela do anjo: «O Senhor é contigo! (Lc 1,28).
Fra Michel Davide OSB

[1] Amedeo di Losanna, Omelie mariane 3.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

19 de dezembro - Anúncio a Zacarias


Anúncio a Zacarias, têmpera acrílica sobre papel, Monastero di Amandola, Itália, 2007.
Zacarias é sacerdote, Isabel pertence à descendência de Araão. «Eram justos diante de Deus, observando, irrepreensíveis, todas as leis e prescrições do Senhor» (Lc 1, 6), e não obstante isso, parecem objeto de um castigo divino. «Isabel era estéril e ambos eram avançados em idade» (Lc 1, 7).
Tem-se a impressão de que a história de Abraão recomece de novo. Como acontece com Abraão e Sara, Deus mesmo intervirá com sua Palavra, e um Anjo será o seu mensageiro. (...)
A aparição de Gabriel no Santuário, durante o oferecimento da tarde, será finalmente o cumprimento próximo da profecia, anunciada no livro de Daniel, referente à vinda do Messias e à unção de um Santo dos Santos (cf. Dn 9, 20-27). E enquanto anuncia a Zacarias que suas orações foram atendidas, o anjo Gabriel, de pé ao lado do altar, descreve a missão do filho que Isabel lhe dará. Diz, antes de mais nada, o seu nome, que já é revelador: «João», que significa «JHWH faz graça».
Deus responde à oração do homem com a superabundância da sua graça. E Gabrel sublinha a alegria trazida pelo nascimento do menino; e já se tem um perfil da alegria messiânica que cumulará a espera de Israel. A consagração de João para uma missão particular é afirmada em termos que recordam a história de Sansão (cf. Jz 13, 4. 13-14) e a instituição do nazierato (cf. Nm 6, 3).
Esta missão consiste no caminhar diante ao enviado de JHWH com o espírito e a força de Elias, isto é, na qualidade de profeta. A plenitude do Espírito Santo que desce sobre ele, desde o seio materno, o coloca nas pegadas de Jeremias (Jr 1, 5), e o seu papel de reconciliador messiânico plenifica a esperança entrevista por Malaquias no final do Antigo Testamento (cf. Ml 13, 24): deve preparar o povo à instauração do Reino.
No momento no qual, para Israel, se anunciam estes dias decisivos, Zacarias se vê reduzido ao silêncio. Ele fez a mesma pergunta de Abraão: «como posso saber que será assim?» (cf. Gn 15, 8), mas sem a fé de Abraão.
Ele opõe a própria situação, assim como a vive, à Palavra Criadora de Deus. Como o primeiro Adão, exige um saber maior que a Revelação que lhe é concedida, mas a Palavra de Deus dá testemunho de si mesma: «quem deu boca ao homem? Ou quem o torna mudo ou surdo, vidente ou cego? Não sou, por acaso, eu, o Senhor? – responde Deus a Moisés, desconfiado e hesitante. – por acaso, não está aí Araão, teu irmão? Tu lhe falarás, e colocarás em sua boca as palavras que serão ditas» (Ex 4, 11. 14-15).
Uma mesma palavra de vida atravessa a carne dos dois esposos, tornando a uma, fecunda, e ao outro, mudo. Zacarias, reduzido ao silêncio, impotente de pronunciar a benção final, deve comparecer diante daquele – Único -- que pode pronunciá-la, e de levar até a plenitude a liturgia iniciada.
Depois, uma vez curado, Zacarias bendirá a Deus, mas a benção sobre o povo será dada, ao final do evangelho (Lc 24, 50-51), por Jesus, que Pedro chamará 'o servo enviado a trazer a benção' (cf. At 3, 26). (...) E com ela, cumprir-se-á, para além de toda esperança, a promessa feita por Deus a Abraão: «Em ti serão abençoadas todas as tribos da terra» (Gn 12 12, 3).
Ph. Bossuyt - J. Radermakers, Jésus Parole de la Grace selon saint Luc, 95-98.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

17 dezembro - Na história dos homens

Capuchin's Bible, c. 1180, Bibliothèque nationale de France, Paris
No início do Novo Testamento encontra-se o homem Jesus, que vem da história dos homens: com sua genealogia, Mateus introduz com muito cuidado, uma longa e confusa história do Antigo Testamento no Novo, que começou com Jesus Cristo. Em uma tríplice série de quatorze gerações, ele retoma, de modo peculiar, toda esta história e a reconduz àquele pelo qual, definitivamente, ela existiu. Ele mostra que esta história, sobre todos os seus caminhos, de maneira misteriosa, coloca em evidência a Cristo; faz ver também que, mesmo no passado, tratava-se sempre e unicamente de um único Deus, que visitava o seu povo e que agora, em Jesus Cristo, tornou-se o irmão dos homens. (...)

A história na qual fez o seu ingresso Jesus, é uma história normalíssima, com todos os escândalos e as vilezas que se encontram entre os homens, com todos os progressos e os bons propósitos, mas também com todas as culpas e baixezas: uma história extremamente humana. As quatro mulheres, que são nomeadas na genealogia, são quatro testemunhos da culpa humana: entre elas está a prostituta Raab, que com um estratagema fez Jericó cair nas mãos dos israelitas; entre elas está a mulher de Urias, da qual Davi se apossou com adultério e homicídio. As coisas não são diferentes se olhamos os homens: nem Abraão, nem Isaac, nem Jacó são figuras ideais; não o era Davi e nem mesmo Salomão; e, enfim, encontramos tiranos, como Acaz e Manassés, cujo trono é banhado com o sangue de pessoas inocentes assassinadas. É uma história tétrica aquela que conduz a Jesus, não sem esperanças e sem momentos positivos, mas no conjunto, uma história de miséria, de culpa, de falência. É este o ambiente no qual poderia nascer o Filho de Deus? – nos vem a vontade de perguntar. A Escritura responde: sim! Exatamente isto nos foi dado como sinal. A encarnação de Deus não é o resultado da ascensão do homem, mas o resultado da descida de Deus. (...)

A genealogia de Mateus começa com Abraão e é, pois, um testemunho da fidelidade de Deus, o qual cumpriu a promessa feita anteriormente a Abraão: ser o portador de uma benção para toda a humanidade. Toda a genealogia, com todas as suas desordens, com seus altos e baixos, é um luminoso testemunho da fidelidade de Deus, que mantém a sua Palavra, não obstante todas as falhas, não obstante toda a indignidade dos homens. O Evangelista Lucas, que nos oferece também uma genealogia de Jesus (Lc 3,23-28), escolheu um ponto de vista diferente. Ele faz chegar a genealogia do Senhor não somente a Abraão, mas até Adão, até às Mãos que plasmaram o homem. Com isto ele deseja indicar que a comunidade de Jesus não é somente um novo Israel, um novo povo de Deus, que Deus reúne para si neste mundo, mas quer afirmar que a missão de Jesus é dirigida à toda humanidade. Não é uma salvação para um grupo, um círculo, mas para a humanidade toda, o mundo. Somente em Jesus Cristo a missão do homem atinge a sua verdadeira meta, somente nele é realizado o projeto criativo «homem»; nele nos apareceu a humanidade do nosso Deus. No rosto de Jesus Cristo apareceu quem é Deus e se manifesta quem é o homem.

J.Ratzinger, Dogma e predicazione, 263-266.